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2 de abril de 2007

Psiquiatria e Aviação: reflexões sobre a saúde psíquica dos aeronautas.




Há muitos anos tenho vontade de escrever sobre esse assunto, mas tenho relutado pela grande quantidade de perguntas ainda sem respostas, pela escassez na área médica de estudos científicos que procuram compreender as relações e mecanismos de adoecimento psíquico entre aeronautas, particularmente comissários e pilotos.

Assim que comecei a trabalhar, em 2003, com medicina de aviação, exercendo minha especialidade, a psiquiatria, na Fundação Rubem Berta da Varig (FRB), a pergunta que mais me inquietava era se o sofrimento psíquico dos funcionários que me procuravam tinha como causa as questões relacionadas ao ambiente de trabalho. Por que, então, as maiores causas de incapacidade para o trabalho segundo o CEMAL (Centro de Medicina Aeroespacial), órgão responsável pelas perícias médicas dos aeronautas em nosso país, eram os distúrbios psiquiátricos? Isso foi tema de um seminário realizado no SNEA (Sindicato Nacional das Empresas Aéreas) em 2004, do qual participei. A principal discussão era se os problemas psiquiátricos seriam decorrentes do ambiente de trabalho, inerentes à função ou se refletiriam vulnerabilidades individuais para o adoecimento. Saímos de lá sem uma resposta definitiva sobre essa e outras questões pertinentes à saúde mental dos aeronautas, pois o tema é complexo e faltam estudos nessa área, não só no Brasil, como também em outros países.

Em pesquisa recente, encontrei duas teses da Fiocruz sobre o tema: "Ciência pós-normal, saúde e riscos dos aeronautas: a incorporação da vulnerabilidade”, de Alexandre Palma e “Percepção de comandantes de Boeing 767 da Aviação Civil Brasileira sobre as repercussões das condições de trabalho na sua saúde”, de Claudia Paulich Loterio, ambas publicadas no site
www.portalteses.cict.fiocruz.br, que trazem informações e reflexões importantes.

O presente artigo não tem a pretensão de ser científico, não apresentarei dados estatísticos ou farei análises multivariadas de risco, pois isso requereria um rigor metodológico que meu ambiente de trabalho na FRB não permitia, haja vista o grande número de atendimentos. Trarei as situações mais comuns que vivenciei no contato com comissários e pilotos ao longo de quase três anos na FRB e, atualmente, em minha clínica privada, propondo algumas reflexões para compreendermos melhor a relação entre a profissão aeronauta e o adoecimento psíquico.

Inicialmente proponho uma reflexão sobre a dificuldade que os aeronautas têm em reconhecer um distúrbio que atinge suas emoções e comportamentos e uma atitude freqüente de adiar o tratamento, levando a complicações futuras para o bem estar e a saúde psíquica e física. Menciono os principais sintomas emocionais e físicos entre os profissionais da área e tento buscar correlações com o perfil da profissão. Ao final, comento os principais transtornos psiquiátricos encontrados entre aeronautas. O objetivo principal deste artigo é conscientizar pilotos e comissários a procurar ajuda especializada o quanto antes forem identificados sintomas que dificultem o exercício profissional e que prejudiquem a qualidade de vida no trabalho e em casa, gerando conflitos familiares e sociais.


À procura de ajuda


O aeronauta reluta em procurar o psiquiatra, evitando-o, ainda que precise negar seu próprio sofrimento. É comum ouvir de meus pacientes o temor que tinham de um dia precisar se afastar pela psiquiatria. “Eu ficava observando as pessoas que estavam de psiquiatria, como se elas fossem diferentes de mim, mais vulneráveis, jamais imaginava um dia precisar desse tipo de cuidado”, disse-me certa vez uma comissária. Ela estava envergonhada de estar ali, mandada pela sua chefia após perceberem que estava chorando nos vôos. Ao final da consulta me fez um pedido, que não lhe desse uma licença pela psiquiatria, mas que a encaminhasse à ortopedia ou então a deixasse voar, pois tinha medo de que isso se tornasse público e a prejudicasse profissionalmente. Também não queria tratamento, pois isso seria a confirmação de que teria algum distúrbio psiquiátrico, o que se recusava aceitar.

O aeronauta que chega ao psiquiatra vem, na maioria dos casos, há mais de um ano com algum sintoma psiquiátrico e, via de regra, é encaminhado ou recorre ao médico por algum evento mais grave que o colocou à prova. Pode ser um ataque de pânico num vôo, um choro compulsivo, um descontrole com algum passageiro ou colega, um incidente durante o pernoite ou um somatório de fatos que culminaram num encaminhamento da chefia. Esse evento, que poderíamos chamar de episódio-índice, por ter sido aquele que flagrou a real necessidade de ajuda especializada, é experimentado pelo profissional com um grande sentimento de fracasso e derrota pessoal. Todos preferiam acreditar que a melhora ocorreria naturalmente, com o passar do tempo, realizando suas atividades normalmente. Contudo, a maioria se esquece dos fatores envolvidos com o processo de adoecimento.

"Episódio-índice", pois, muitas vezes, o aeronauta procura restringir seu problema àquele único episódio que motivou seu encaminhamento, subestimando os sintomas mais antigos e assumindo uma atitude defensiva, atribuindo mais à empresa do que a si próprio a razão de seu sofrimento. Embora a empresa e as particularidades de sua função possam ter grande participação, é necessário compreender os sintomas dentro de um contexto social, familiar e pessoal mais amplo, onde características de temperamento e personalidade, relações sociais e familiares, hábitos de vida e comportamentos terão um papel de fundo importante. A resistência em enxergar além do "episódio-índice" revela uma defesa inconsciente de aceitar que o processo de adoecimento possa ter raízes que vão além da profissão.

Eu arriscaria afirmar que para cada aeronauta em tratamento, existem ao menos dez que não procuram ajuda e continuam levando a vida e o trabalho no limite de suas forças. O que eles não cogitam, é que um dia eles poderão não suportar mais a pressão e experimentar um episódio de estresse agudo que os levará inexoravelmente a um tratamento, entretanto num estado de gravidade maior, onde o afastamento do trabalho e as conseqüências emocionais serão muitas vezes inevitáveis.

O corre-corre da profissão e do dia-a-dia faz esquecer momentaneamente o sofrimento, anestesia os sentidos e permite que o aeronauta dê seguimento às suas tarefas e obrigações, até o momento em que as emoções extravasam e o corpo começa a falar.


A linguagem do corpo pede socorro


A queixa mais freqüente no atendimento inicial de um aeronauta na psiquiatria não é psíquica, mas física. É o cansaço, a insônia, a palpitação, a falta de ar, a tonteira, as dormências, entre outras.

A medicina psicossomática estuda os sintomas físicos atribuídos a estados psíquicos diversos e conclui que todos os distúrbios da mente podem produzir sintomas que simulam doenças físicas. Isto pode ser justificado pelo grande número de encaminhamentos à psiquiatria por outras especialidades médicas, como a medicina de aviação, clinica médica, dermatologia, ortopedia, etc. O aeronauta identifica mais facilmente o sintoma físico, acreditando estar com alguma desordem do corpo, motivo pelo qual procura inicialmente uma especialidade clínica. Ele não percebe o sintoma psíquico que está por trás.

A possibilidade de o sintoma físico ser de origem psicossomática é interpretada, pelo paciente, como descrédito, por parte do médico, de sua doença, como se padecer da mente fosse uma condição menor do que adoecer do corpo. Grande parte dos encaminhamentos de outras clínicas não chega à psiquiatria por resistência do próprio paciente, que prefere procurar outras especialidades. É freqüente pessoas optarem pela homeopatia, medicina ortomolecular ou acupuntura, acreditando que possam melhorar sem precisar recorrer ao psiquiatra. Essas especialidades não substituem a psiquiatria no tratamento dos distúrbios mentais ou psicossomáticos, apenas adiam o tratamento adequado, deixando os pacientes vulneráveis a novas crises e comprometendo o prognóstico de sua doença. Essa pode ser mais uma forma inconsciente de adiar a solução de um problema que cresce lenta e gradualmente.

Os aeronautas freqüentemente fazem do corpo um laboratório. Trocam entre si experiências de como aliviar sintomas comuns na aviação, como p.ex. insônia, cansaço, estresse e fadiga de vôo. Aceitam a opinião do colega como se ele fosse um especialista, seguindo conselhos e, algumas vezes, se automedicando. A falta de tempo para procurar um médico é muitas vezes a desculpa para retardar o tratamento.

A automedicação entre comissários e pilotos é freqüente, muitos fazem uso de comprimidos para ansiedade e insônia, de anfetaminas para se manterem alertas ou para emagrecerem. Alguns usam bebidas alcoólicas para aliviar o estresse e outros desenvolvem o alcoolismo, uma das principais causas de afastamento entre aeronautas no Brasil. Isto sem falar no uso de outras drogas mais pesadas.

Não dar ouvido ao corpo que fala é ignorar um sinal de alerta que pode evitar conseqüências sérias para a saúde e o trabalho. Não é incomum o comissário entrar em pânico durante o vôo, desmaiar ou não conseguir embarcar por alguma sensação desagradável. Essas situações, quando ocorrem, são delicadas e trazem grande sofrimento e angústia, além de expor o funcionário diante de seus colegas e de sua chefia. Na maioria das vezes, essas situações poderiam ser evitadas se o aeronauta procurasse ajuda de forma preventiva, logo que notasse os primeiros sintomas. Nove em cada dez comissários atendidos em situações de emergência como essas revelaram sintomas prévios que prenunciavam uma crise, mas preferiram testar até onde poderiam resistir sem recorrer a um tratamento.

Abaixo estão listados alguns sintomas físicos que refletiam distúrbios psíquicos em aeronautas que procuraram ajuda após longa demora:

* Palpitações, taquicardia e falta de ar associados a pousos e decolagens;
* Pressão arterial lábil, sem história de hipertensão arterial sistêmica;
* Sensação de abafamento na aeronave e/ou nos quartos de hotel durante os pernoites;
* Insônia nos pernoites ou no repouso durante o vôo;
* Sudorese nas mãos e axilas durante o vôo;
*Náuseas, vômitos e/ou diarréia antes do vôo ou nos pernoites, sem associação com desordens gastrintestinais.
* Tremores em mãos, pálpebras e lábios;
* Tonteira ou sensação de desmaio antes ou durante o vôo;
* Cansaços físico e mental;
* Dores nas pernas ou sensação de pernas pesadas, como se estivesse carregando pesos de chumbo;
* Dores difusas pelo corpo, principalmente dores musculares em ombros e braços;
* Cefaléia e crises repetidas de enxaqueca;
* Perda ou aumento de apetite (incluindo compulsões por doces) com ou sem reflexos no peso corporal;
* Pesadelos, terror noturno, sonambulismo e outros transtornos do sono;
* Queda de cabelo, pruridos ou lesões de pele.


Eu, eu mesmo e mais ninguém

A sensação de solidão entre os aeronautas é freqüente. Alguns se sentem desvalorizados pela empresa, como se fossem apenas números, ficando à sua disposição e abrindo mão de desejos próprios, percebendo pouco retorno e reconhecimento por seu trabalho. Convivem com a distância de suas famílias, mas sem conseguir se desligar das preocupações cotidianas. Permanecem a sós em pernoites, pois o rodízio de equipes não permite laços de amizade entre colegas de vôo, tornando as relações de trabalho superficiais e temporárias. Passam horas absortos em seus próprios pensamentos e, por isso, tornam-se, às vezes, reféns de si mesmos.

O glamour que atrai o profissional para a aviação extingue-se com o tempo. Viajar para vários lugares, conhecer diferentes culturas, freqüentar restaurantes, lojas, teatros e museus pelo mundo perdem sua magnitude quando, do outro lado, está a saudade da família, o esgotamento físico e emocional, a insatisfação pessoal e o medo. Essa profissão cobra caro de quem aceita o desafio de estar em vários lugares quase ao mesmo tempo. Milhas o separam da família, dos amigos, de sua casa ou de onde realmente gostaria de estar. Um Natal distante, um aniversário longe dos amigos, um filho doente sem poder acompanhá-lo ao médico, um marido ou uma esposa ciumenta, alguém gravemente enfermo, uma casa assaltada, enfim, situações que noutra profissão ter-se-ia flexibilidade para estar onde é preciso, na aviação é um obstáculo difícil de transpor. Os sentimentos de solidão e desamparo nessas horas são unânimes.

Quando o psiquismo não vai bem, é muito mais difícil lidar com essas situações adversas e com a distância das pessoas amadas. Isso desperta angústia, medo e insegurança, que interferem com o vôo e trazem sofrimento psicológico. A falta de amparo nos pernoites pode levar a situações extremas, como, p.ex., passar uma noite em claro, ingerindo bebidas alcoólicas ou comprimidos para relaxar, ou ter medo de ficar no quarto sozinho, pensando em coisas desagradáveis, ou ainda, surpreender-se com pensamentos ruins ou trágicos, como de suicídio ou de morte. Muitos pacientes relatam experiências desagradáveis nos pernoites, alguns desenvolvem uma fobia ao quarto de hotel, e a repetição desses sintomas nessas condições agrava a sensação de medo e solidão.

Os sintomas psicológicos apresentados por aeronautas são muito variados e dependem das características de temperamento e personalidade de cada um. Abaixo, alguns exemplos:

* Medo de alguém morrer na família e não poder chegar para se despedir;
* Medo de sofrer um acidente em um país estranho e não voltar para casa;
* Medo de morrer e deixar sua família e filhos, sem alguém para cuidar;
* Medo de sofrer um infarto no pernoite e não ser socorrido;
* Idéias repetitivas de morte, imaginando o avião caindo;
* Idéias de suicídio ou acreditar que possa perder o controle e pular da janela do hotel;
* Idéias repetitivas de que algo de grave pode estar ocorrendo a algum familiar;
* Medo de alguém invadir seu quarto;
* Medo de dormir no escuro, permanecendo de luz acesa;
* Ansiedade, na forma de palpitação, taquicardia e falta de ar ou inquietação/agitação;
* Crises de choro durante o vôo ou nos pernoites;
* Intolerância com o passageiro ou estado de irritabilidade constante;
* Sensação das pessoas ao redor perceberem seu estado emocional, apesar da tentativa de esconder seus sentimentos;
* Sentimento de solidão e desamparo no vôo e nos pernoites;
* Necessidade de arrumar o quarto de hotel para passar o tempo;
* Dificuldade para conciliar o sono nos pernoites, por não conseguir “se desligar”;
* Falta de atenção ou atrapalhar-se em procedimentos do vôo ou ser desastroso em tarefas que antes exercia com facilidade;
* Muitos outros.


Aonde a profissão pega


Os motivos para o adoecimento podem ser vários: problemas financeiros, morte de algum familiar, conflitos conjugais e familiares, um filho pequeno sem ter alguém para cuidar, traumas, estresse crônico, etc. Porém, na aviação existem particularidades que ajudam a perpetuar e agravar alguns sintomas psíquicos.

O medo da morte

Todos os comissários e pilotos passaram por treinamentos e têm consciência do risco que correm. Apesar das medidas rigorosas de segurança e da aeronave ser um dos meios de transporte mais seguro, todos lidam com o medo inconsciente de um incidente ou acidente aéreo. Eles escutam, nos treinamentos, que é preciso estarem preparados para quando acontecer. Esse medo não pode ser negligenciado. Ele pode não interferir com as obrigações em vôo (e de fato não deve), mas na presença de qualquer infortúnio, ele vem à tona com toda a força.

O medo real de morte traz experiências psicológicas e somáticas traumatizantes. Muitos aeronautas ficam em estado de estresse pós-traumático após incidentes aéreos e têm dificuldade para retornar ao trabalho. Desenvolvem o que chamamos de fobia do vôo. Esse estado de fobia é caracterizado pelo medo de entrar no avião, precedido ou não por sintomas de ansiedade, como falta de ar, palpitação, taquicardia, sensação de abafamento ou crença de que o avião poderá cair.

Outros aeronautas desenvolvem a fobia sem a experiência de um incidente aéreo. Eles convivem por um tempo com sensações do tipo pânico quando estão em vôo e têm um risco maior de vivenciar situações normais de vôo como traumáticas. Uma turbulência mais forte pode vir acompanhada por uma sensação de que a aeronave está caindo, levando à experiência psicológica de morte.

O que conta para um estado de estresse pós-traumático ou para uma fobia do vôo, portanto, é a experiência psicológica individual de morte que cada um poderá ter em situações específicas. Quanto maior a ansiedade e o medo do profissional, menor a gravidade da situação necessária para desencadear o quadro. Por isso, pilotos estão menos suscetíveis do que comissários, pois eles têm um treinamento mais rigoroso, contam com mais informações e estão à frente da condução da aeronave.

Essa convivência com o medo subliminar da morte e do acidente/incidente aéreo também pode ser aguçada na presença de maior fragilidade emocional. Comissárias que se tornam mãe, p.ex., passam a temer mais por suas vidas, quando estão voando, pelo medo de abandonar seus filhos.


O confinamento

Trabalhar numa cabine fechada e pressurizada também traz conseqüências para a saúde do aeronauta. Algumas são bem conhecidas, como o barotrauma de orelha causado por despressurizações da cabine nos pousos das aeronaves. Porém, os efeitos psicológicos do confinamento são subestimados e só podem ser percebidos naqueles pacientes que relatam seu incômodo com o ambiente físico de trabalho.

Alguns aeronautas, principalmente comissários, sentem-se incomodados de estarem presos num local fechado, de onde não podem sair, restritos em seus movimentos e, algumas vezes, com sensação de abafamento. Isso é tão pior, quanto mais tempo durar o vôo. Esse incômodo pode gerar sintomas de ansiedade, como falta de ar ou sensação de “ar rarefeito”, inquietação, com necessidade de andar, sudorese, taquicardia e, em casos extremos, ataques de pânico. O confinamento também pode produzir, em algumas pessoas, claustrofobia, com dificuldade para permanecer também em outros ambientes fechados, como elevadores e túneis.

O confinamento também pode levar a fobia do vôo, afastando o aeronauta do seu trabalho. Nos pernoites, alguns hotéis possuem janelas que não abrem, mantendo a sensação de enclausuramento mesmo depois de deixada a aeronave, aumentando o tempo de convívio com esse tipo de ambiente. Alguns comissários desenvolvem a fobia do quarto de hotel, tendo mais dificuldades nos pernoites do que nos vôos propriamente.


O fuso horário e a privação de sono


Esse aspecto atinge a todos que trabalham em vôo, independente das características psicológicas. Como reagirão ao fuso horário dependerá da sensibilidade de cada aeronauta.

O fuso horário altera os ritmos biológicos e interfere com o sono, geralmente causando insônia. A insônia durante longo período leva à privação de sono, que coloca nosso organismo sob o risco de uma série de doenças físicas e mentais. Hormônios são secretados de acordo com ritmos circadianos e a privação do sono pode levar a desordens metabólicas. A memória é aprimorada durante o sono e a insônia crônica pode acarretar problemas de memória. Em pessoas saudáveis, a privação do sono gera irritabilidade, desatenção, ansiedade, impulsividade, dificuldade na tomada de decisões, cansaço, desânimo, entre outros sintomas. Em pessoas predispostas (com passado de algum distúrbio psiquiátrico ou com história familiar de doença mental), pode acarretar quadros ansiosos e depressivos graves, sem que haja um evento causal externo identificável.


A relação com o passageiro


Algumas pesquisas na área da medicina do trabalho concluíram que profissões de contato direto com o público têm um risco maior de adoecimento psíquico do que profissões em ambientes de escritório. É o exemplo dos bancários, que apresentam um nível elevado de doenças psiquiátricas, como depressão e transtornos ansiosos. As profissões na área de saúde também possuem um alto risco de adoecimento psíquico pelo contato direto com o público. Quanto mais exigente for o perfil das pessoas que utilizam os serviços, maior o risco de estresse entre os trabalhadores.

No caso da aviação, comissários estão mais predispostos ao adoecimento do que pilotos, por terem um contato direto e contínuo com o passageiro. É freqüente o comissário queixar-se de desentendimentos com o passageiro, principalmente quando o grau de exigência do passageiro é alto. Alguns preferem trabalhar na classe econômica ao invés da primeira classe pela diferença nesse padrão de exigência.

O comissário é o representante direto da empresa, a quem o passageiro recorre para fazer reclamações e elogios. Mas nem sempre o passageiro tem a capacidade de distinguir entre problemas da empresa e os que são da alçada do comissário, muitas vezes fazendo exigências que não estão ao alcance do profissional. Nesses casos, o comissário é pára-raio das deficiências da empresa, que interferem com o vôo.

No momento de dificuldade, as cobranças dos passageiros e o nível de estresse entre os comissários crescem à medida que a crise da companhia atinge a eficiência do vôo. Isso leva a um risco maior de adoecimento por estresse entre os profissionais. O maior número de afastamentos pela psiquiatria pode ser, portanto, reflexo da crise pela qual a empresa está passando, como também pode decorrer de medidas administrativas, como corte de pessoal, escalas mais apertadas, programações mais extensas e vôos mais longos.


A relação com a empresa


Existe uma síndrome em psiquiatria do trabalho chamada "Burnout", equivalente à síndrome de esgotamento emocional do trabalho. Isso ocorre quando as condições de trabalho e a relação entre trabalhador e empresa estão ruins. O funcionário sente-se estressado e sobrecarregado por não ter condições razoáveis para exercer sua função e percebe que não está sendo valorizado como profissional por sua chefia e pela empresa. Isso leva a um sentimento de revolta e, em última instância, à perda da identidade profissional e do prazer pelo trabalho.

Muitos que procuram a psiquiatria estão desiludidos com a profissão, alguns sequer desejam retornar ao vôo. Isso pode decorrer de motivos clínicos, como sintomas que se contrapõem à atividade aérea. Entretanto, em outros casos, a falta de desejo de voar decorre de uma desmotivação e da perda do prazer, por perceber que o trabalho e as relações profissionais estão deturpados e não mais possuem o encantamento de antes. Esse sentimento leva à perda da identidade profissional, quando o funcionário não se reconhece mais naquela função.

O "Burnout" pode levar a sintomas ansiosos e depressivos, insônia, irritabilidade, intolerância no ambiente de trabalho, baixa auto-estima e sentimento de fracasso, e pode repercutir nas relações sociais e familiares do profissional. A pessoa que passa por sintomas desse tipo e que desconfia serem provenientes do estresse no trabalho deve procurar um médico para uma avaliação. Em muitos casos, o "Burnout" se confunde com outras síndromes psiquiátricas ou pode coexistir com uma depressão, p.ex., requerendo, desta forma, tratamento especializado.


Os principais distúrbios psiquiátricos em aeronautas


As síndromes depressivas estão no topo da lista. É freqüente a queixa de tristeza, desânimo, falta de prazer nas atividades diárias, baixa auto-estima, conflitos pessoais e familiares, falta de perspectivas de mudança ou de melhora em curto ou médio prazo. A síndrome depressiva é normalmente de leve a moderada e não impede o exercício profissional. Entretanto, ela contribui para um estado de estresse permanente, que conduz a uma intolerância generalizada que não mais se restringe ao ambiente de trabalho e que passa a prejudicar a vida social e familiar do aeronauta. A depressão pode se agravar com o tempo, surgindo idéias de morte e suicídio.

A ansiedade pode aparecer de forma isolada ou em conjunto com a síndrome depressiva. O profissional fica insone, inquieto, com pensamentos negativos que trazem angústia, muitas vezes sem concentração e com problemas de memória que passam a interferir com suas atividades. Sintomas tipo pânico ou fobias são comuns, com sensações físicas desagradáveis, como taquicardia, falta de ar, sudorese, tremores, tonteiras, dormências e com dificuldade de permanecer em ambientes fechados, como na aeronave e no quarto de hotel. Em alguns casos ocorre descontrole de impulsos, tornando a pessoa agressiva na maneira de se relacionar com os outros.

Sintomas obsessivos e compulsivos também ocorrem com certa freqüência. Podem envolver o medo constante de sofrer algum acidente/incidente aéreo, pensamentos repetitivos e involuntários envolvendo tragédias com a própria pessoa ou algum familiar, pensamentos estranhos e repetitivos de suicídio ou morte e manias, como de limpeza, arrumação, checagem ou simetria. Alguns relatam dificuldades na hora de fazer as malas ou se arrumar por perderem muito tempo com rituais repetitivos.

O abuso de substâncias, como álcool, café, tranqüilizantes, cigarros e outras drogas tem a intenção inicial de aliviar os sintomas, mas pode predispor o profissional ao desenvolvimento de dependência, agravando os sintomas mais antigos ou gerando doenças mais graves.

Um transtorno comum entre comissárias é a depressão pós-parto. Ela surge após o nascimento do bebê, mas a maioria das mulheres só procura a psiquiatria na época em que precisa retornar ao trabalho. Isso decorre da necessidade de distanciar-se do filho, o que é experimentado com forte angústia e ansiedade. O padrão de relacionamento anterior com o filho é de preocupação excessiva, dificuldade de distanciamento, sentimento de insuficiência como mãe, intolerância, obsessões e medos infundados, além de tristeza e ansiedade.

O transtorno de estresse agudo ou pós-traumático também é comum, quando ocorre alguma situação traumática, como um incidente aéreo, um problema durante um pernoite ou quando algo acontece em casa e o profissional está distante, sem poder participar ou ajudar.


Conclusão

A psiquiatria é a primeira causa de afastamento por doença entre aeronautas e isso não é por acaso. Características da profissão e a demora em procurar ajuda colocam aeronautas sob um risco elevado de adoecimento psíquico. Por outro lado, as empresas parecem não ter despertado para esse grave problema e não desenvolvem políticas de prevenção e conscientização. Os aeronautas expõem-se cada vez mais ao risco de adoecimento psíquico, principalmente diante das difíceis condições de trabalho e da sobrecarga no setor. Os hábitos de vida, a falta de rotina e horários e o distanciamento da família contribuem para o aumento dessa vulnerabilidade.

Alertar os profissionais de vôo para que possam procurar ajuda e se preservar, sem comprometer demais sua saúde e bem-estar sócio-familiar, é o mínimo que se pode fazer diante da difícil realidade que é trabalhar na aviação comercial nos tempos atuais.
Artigo de autoria do Dr. Leonardo Figueiredo Palmeira